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quarta-feira, 1 de junho de 2011

Ele, Ela e A Outra VIII - FINAL

Saltou do carro e foi directo ao carro, mas nem sinal d’Ela. Ele não sabia o que pensar. A ideia que lhe passava pela cabeça não podia ser real. Não agora. Não quando deixariam de ser só eles os dois. Não quando surgira um rebento daquele amor, que apesar da fase menos boa, continuava lá, no fundo do seu coração, na essência do seu ser. Não. Olhou na direcção da berma da falésia, e sem saber porquê, uma lágrima percorreu o seu rosto, caindo solitária no chão. Era assim que Ele se sentia agora. Foi até à berma, sem saber se queria ver ou não o que pudesse lá estar. Bem lá no fundo, alojado e protegido das ondas por alguns rochedos, estava o corpo inerte d’Ela. As forças nas pernas faltaram-lhe, e deixou-se cair sobre os joelhos no chão, e soltou um grito, que nunca se soube se foi de raiva ou tristeza.
Passaram-se dias, semanas e até meses, e Ele nunca mais fora o mesmo. Talvez pela culpa que sentia. O arrependimento era tão pesado quanto o mundo, ou talvez até mais. Não haviam mais cores nas flores, nem mais calor do sol. Não havia o cheiro do perfume dela a invadir-lhe as narinas, nem tão pouco o brilho do seu sorriso, ou a suavidade da sua pele. Recordava todos os dias da sua vida aquele fatídico dia, em que tudo acabara. Tal como Ela, também nesse dia Ele foi do Céu ao Inferno. Tornara-se um homem melancólico, carrancudo. Todos diziam que Ele se tornara apenas uma sombra de si mesmo, e nada mais.
A Outra observara de longe o definhar d’Ele. Insistia diariamente, queria reaver aqueles momentos que haviam tido, naquela que para ela fora a sua mais longa relação pseudo-amorosa, mas sem sucesso. Tudo o que Ele lhe oferecia era desprezo, palavras rudes e modos grosseiros. Mas ainda assim, A Outra sentia a necessidade de estar com ele, de o ver. Apesar da sua lacuna de inteligência e consciência, também ela lamentava o que acontecera. Não a morte d’Ela, mas sim no que isso o transformou a Ele. Isso era o que mais lhe custava, a frieza, a indiferença. Isso era o que fazia com que se tornasse insuportável toda aquela situação. Decidira mudar de cidade, por não ter estrutura mental nem psíquica para aguentar o desprezo e o resquício de consciência pesada que se instalara. Desde então, nunca mais ninguém ouvira falar d’A Outra. Comentava-se na padaria, onde as senhoras de alguma idade comentavam desinteressadamente a vida alheia, que se casara com um magnata do ramo financeiro e que partira para as Caraíbas.
Passado algum tempo, também ele desaparecera. Não atendera mais o telemóvel, até que este deixou de tocar. Não atendera quando tocaram à campainha insistentemente. Diziam que também Ele se atirara falésia a baixo. Nunca aparecera um corpo que comprovasse ou desmentisse tal teoria.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Ele, Ela e A Outra VII



A Outra não digerira toda aquela humilhação. À sua maneira, A Outra amava-o. Esse sentimento fizera despertar nela todo um engenho que nunca possuíra. Queria tê-lo, independentemente do custo que isso acarretasse. Nenhum custo seria excessivo se isso lhe permitisse ficar com ele. Esperou então discretamente à porta da casa d’Eles à espera que Ela saísse, rezando para que quando o fizesse, fosse sozinha. E assim foi. Tal como se de uma detective se tratasse, segui a concorrente até ao destino final, a falésia. Deixou o carro ainda a uma distância para que Ela não se apercebesse da sua presença, e sorrateiramente aproximou-se d’Ela. Aproveitando-se da distracção d’Ela, agarrou-a e começou a desferir-lhe violentas pancadas na cabeça, deixando-a sem reacção. “Agora já sabes o que é que é bom”, pensou para si. Ela estava desorientada, sem saber ao certo o que lhe estava a acontecer. Quando deu por si, estava na berma da falésia, completamente indefesa, até que, por fim, A Outra empurrou-a falésia a baixo. A Outra ficou a ver o vulto d’Ela desaparecer por entre as rochas, e saiu caminhando com um ar triunfante, de dever cumprido.
Alheio a tudo isto, e já alto ia o sol na janela quando Ele acordou. A sua cabeça parecia ter o peso do mundo, tamanha era a ressaca. As costas também se manifestaram depois de uma noite dormida no sofá. A custo, Ele levantou-se, e quando se dirigia para a cama, deparou-se com um pequeno saco à entrada, que passara despercebido na noite anterior. Abriu-o, e dele retirou um par de sapatos azuis muito pequenos, para bebé. Subitamente, e como se de um remédio instantâneo se tratasse, tudo fizera sentido. Todas as indisposições d’Ela e alguma ansiedade e nervosismo faziam agora todo o sentido. Apressou-se a ir buscar o telemóvel, procurou o número d’Ela e ligou. Quando começa a chamar, ouve o som do toque no quarto, e rapidamente se desloca até lá, constatando que este tocava no chão, depois de passada noite ter sido jogado contra o quadro. Apercebeu-se então que Ela não dormira em casa, e que provavelmente estava em casa de uma das amigas. Pensara em dar-lhe espaço, mas aquilo mudava tudo. Percorreu toda a lista de contactos d’Ela e ninguém sabia do seu paradeiro, pelo que restava uma única opção: a falésia. Ele sabia o quando ela dava valor àquele lugar, e só podia ser lá que Ela estava num momento difícil. Colocou uma t-shirt apressadamente e precipitou-se em direcção à falésia. Ao chegar, viu o carro dela estacionado, e esboçou um sorriso.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Ele, Ela e A Outra VI

Voltou ao quarto, e Ele estava agora de calças e em tronco nu. Precipitou-se na direcção d’Ela mas foi prontamente afastado. Ela apoiou-se na cómoda de costas para ele, agora sentado aos pés da cama. Fitou-o pelo espelho, e num acesso de raiva, arrastou tudo que estava sobre a cómoda. Abriu as gavetas e tudo quanto lhe veio à mão foi também jogado ao chão, enquanto soltou um grito de raiva profunda. O telemóvel começa a vibrar-lhe no bolso, e num acesso de raiva atirou-o na direcção do quadro, fazendo ricochete e tombando o candeeiro da mesa-de-cabeceira.
E agora, estavam os dois ali, sem falar com tanto para dizer, a ensaiar um discurso em silêncio. Ela não estava em si. Em breves instantes o seu mundo desabara. Estava tão feliz não havia nem uma hora, e agora, estava ali, sem saber o que fazer ou dizer. Num súbito acesso de raiva, agarrou nas chaves do carro e saiu disparada porta fora.
Ele continuou no quarto, não tinha coragem de ir atrás dela, já a conhecia, sabia que ela precisaria de espaço e pressioná-la só aumentaria a sua fúria. Não a censurava. Até achava que a reacção d’Ela fora bastante branda. Ele tentou colocar-se no lugar d’Ela, e em nenhuma das hipóteses que conjecturara conseguiria ser tão brando. Dirigiu-se à casa de banho para passar o rosto por água. Não suportava olhar-se ao espelho. A ideia de ter traído aquela que tanto amava por uma simples relação carnal fazia-o sentir nojo de si próprio. Repudiava-se a si próprio por ter deixado toda a situação chegar àquele ponto, ponto esse onde perdera o controlo de tudo. E agora estava ali, só, sem se suportar a si mesmo. Foi até à sala, agarrou na garrafa de whisky que recebera de prenda no Natal que estava no bar da sala, e despejou uma generosa dose no copo. Bebeu tudo de uma só vez, e voltou a encher novamente, um copo a seguir ao outro, até deixar a garrafa vazia, perder o equilíbrio e ficar estendido no chão, tal era o estado de embriaguez.
Ela conduzia o carro mal conseguindo ver o que se encontrava diante dos seus olhos, de tão molhados que estavam das lágrimas. O rebentar das ondas nas rochas sob aquela forte luz de luar era a única forma que sentia ser possível acalmá-la. Fez todo o caminho numa condução irregular porém conseguiu chegar sã e salva à falésia. Desde que se conhecera como gente que frequentava aquele lugar, em pequena com os seus pais, em adolescente com os namorados, e ultimamente, só. Aquele local funcionava como que um retiro espiritual. Quando o trabalho se tornava demasiado stressante ou a relação com ele tinha um momento menos bom, ia para lá, ver o Sol pôr-se lentamente lá ao fundo no horizonte, ou então ver o reflexo da lua brilhante num mar ondulado. Estacionou o carro, saiu e dirigiu-se à extremidade da falésia. Devia ter uma distância de não menos que uns quinze metros até ao mar. Fechou os olhos e abriu os braços. Respirou fundo, como se disso dependesse a sua vida. E ali ficou, perdendo a noção do tempo, do espaço, de tudo. Não sabia se tinham passados poucos minutos ou várias horas, mas sentiu-se leve por instantes ou horas, que não sabia precisar.

domingo, 1 de maio de 2011

Ele, Ela e A Outra V

Ele chegou a casa satisfeito por finalmente ter colocado um ponto final em toda a situação com A Outra. Procurou nos bolsos pela chave de casa, mas não a encontrou, usando a suplente que se encontrava sob o vaso ao lado da porta da cozinha. Sentiu movimento no quarto, e sentiu o cheiro das velas com que partilhara a última noite de verdadeiro amor aquando o aniversário de namoro. Sorrateiramente, foi-se despindo e deixando as peças de roupa pelo chão, até ficar completamente nu. O quarto estava iluminado apenas por algumas velas, e sobre os lençóis de cetim da cama encontravam-se espalhadas algumas pétalas de rosa. Ele viu um corpo sob os lençóis, completamente tapado. Juntou-se a ele, e sentiu aquele cheiro a perfume que tanto gostava. Beijou-a, sentindo o seu corpo. Por momentos pareceu-lhe diferente mas estranhamente familiar, mas deixou-se levar naquele momento que há muito esperava.
Subitamente, a luz do quarto acende-se. Foi como se o tempo quebrasse. Ele sentiu-se confuso. Retirou o lençol sob o qual estava tapado olhando em direcção à porta do quarto. Era Ela. Não quis acreditar, esfregou os olhos, e olhou novamente. Continuava a ser Ela. Já sentindo saber a resposta, olhou sub-repticiamente para o lado, confirmando aquilo que suspeitava: era A Outra. Ela estava paralisada à porta do quarto. Não sabia como reagir. Não sabia se havia de gritar ou chorar, de explodir ou fugir. Mil e um pensamentos percorreram-lhe freneticamente a mente. Ficou especada sem saber o que fazer ou dizer. Ele expulsava A Outra da cama agressivamente. Ao sair da cama, Ela reparou na roupa interior que A Outra tinha vestida. Nada mais nada menos que aquela que usara no casamento. Foi a gota de água. Precipitou-se agressivamente na direcção da loira sensual atacando-a ferozmente. Meio amedrontada, A Outra ficou sem capacidade de ripostar, enquanto era fortemente espancada por Ela e levada em direcção à porta, colocando-a porta fora e jogando a roupa para cima do corpo estendido no chão, fechando a porta num estrondo. Ela respirava ofegantemente, com o coração a bombar a adrenalina corpo fora. Abriu novamente a porta e violentamente retirou a roupa interior que A Outra tinha colocado e lhe pertencia, sem qualquer resistência.

sábado, 30 de abril de 2011

Ele, Ela e A Outra IV

Para Ele aquele relacionamento não passava de uma forma de aliviar a tensão sem a descarregar em cima d’Ela. Tudo não passara de uma conjugação de factores: Ela andava sempre cansada, indisposta e na cama já há muito que as coisas não funcionavam bem. Ele andava tenso do trabalho, e toda aquela situação piorava o seu estado e aumentava a sua fome de sexo, até que dada noite, depois de um jantar com os Colegas de Trabalho e de muito whisky, A Outra apareceu e escusado será explicar o que acontece quando um homem alcoolizado com falta de sexo é seduzido por uma mulher sensual. Desde então que se encontravam duas a três vezes por semana para o que já se poderia considerar o sexo normal. Toda a relação se baseava apenas e só em sexo, puro e duro. Não haviam dramas pessoais, economia ou discussões. Apenas sexo. Sexo bom. Muito sexo. Mas apenas e só isso mesmo: Sexo.
Para A Outra, aquele provavelmente seria o mais próximo de um relacionamento que ela já tivera. Não pela quantidade de tempo dispendido em sexo, mas pelo tempo que já andavam naquilo. Desde a primeira noite de prazer, já haviam passado cerca de três meses. Nunca tivera mais que um ou dois meses com a mesma pessoa, nem nos tempos de secundária. Perdera a virgindade num carro à beira mar, com um rapaz com bem mais que as 14 primaveras pelas quais tinha passado na altura e que conhecera nessa mesma noite. Desde então seguira-se uma infinidade de rapazes de todas as raças, idades e classes sociais a um ritmo alucinante. Tornara-se amante de sexo, e não se importava com quem teria de o fazer, desde que o fizesse.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Ele, Ela e A Outra III

O plano d’Ela era o que mais se aproximava da realidade, pelo simples facto de incluir algumas, mas não todas, Amigas da Faculdade. Apenas as mais chegadas foram incluídas naquele que poderia ser um dos dias mais importantes da vida d’Ela. Encontraram-se no café que desde o tempo de estudos era o ponto de encontro para longas horas de conversa e não só. Mas aquele era um dia especial. Devidamente acomodadas as Amigas da Faculdade e Ela em volta da mesa redonda, Ela remexe a mala em busca do envelope ainda selado das análises que lhe diriam se a sua suspeita era fundada ou não. Com o envelope nas mãos, suspirou e olhou em redor. As Amigas da Faculdade encorajavam-na de tanta curiosidade, até que finalmente Ela abre o envelope que confirma o facto: estava grávida. Tentou manter a expressão séria, de forma a iludir as companheiras que rodeavam. A expressão das Amigas da Faculdade foi-se fechando gradualmente, crentes na negatividade do resultado, quando Ela diz, “Agora tenho em mãos um problema… Quem vou escolher para madrinha?”. Logo as Amigas reagiram à boa nova, com pequenos saltos e gritos de alegria um tanto ou quanto estridentes. Porém, o pensamento d’Ela estava longe, pensando como iria dar a notícia àquele que era o pai o seu filho ou filha. Por entre planos e esquemas numa alongada conversa de horas, o sol já se escondia por trás da serra, e depois das despedidas, Ela tomou o seu rumo em direcção a casa.

O plano d’Ele, ao contrário do d’Ela, não estava nem perto do que Ela imaginava. Ele olhou nervosamente para o relógio. Tinha combinado às três e meia em frente à loja de antiguidades, local escolhido por ser um tanto ou quanto discreto e perto do destino final. Decidira que aquela seria a última vez, que poria um ponto final em toda aquela história que a seu ver há muito se arrastava. Tudo aquilo o fazia sentir mal. Cada vez que pensava n’Ela, sentia-se de consciência pesada, mas naqueles instantes era tudo tão indescritivelmente prazeroso, que por meros instantes fazia valer a pena. Enquanto estes pensamentos se cruzavam por entre a sua mente, A Outra aparece ao fim da rua, cruzando a esquina. Ele suspirou. A Outra estava mais provocante do que alguma vez a vira. O cabelo esticado ondulava ao sabor da brisa leve. O vestido vermelho justo parecia realçar ainda mais as curvas redondas de uma silhueta invejável. Tudo n’A Outra era como se fosse concebido para atrair mortalmente. Sem trocar uma palavra que fosse, seguiram caminho, até ao motel da vila. Palavras não se ouviram naquelas que foram longas horas dominadas pelo prazer e a luxúria, deixando as hormonas e os instintos animais falar mais alto que tudo. Depois de satisfeitos todos os prazeres carnais e humanos, Ele e A Outra tomaram um duche e saíram. Na porta do quarto, e antes de cada um seguir o seu rumo, calma mas firmemente, Ele disse “Acabou”, virando costas e seguindo em direcção a casa, alheio à reacção em mudo d’A Outra. Ficou estática por momentos, com os olhos prestes a rebentar em lágrimas, tremendo e cerrando os punhos como se fosse explodir a qualquer momento, porém, controlou-se. Respirou fundo, limpando cuidadosamente as lágrimas que não chegaram a cair, evitando borrões na maquilhagem. O seu rosto esboçou um sorriso perverso de quem anseia vingança, e nisto, seguiu o caminho oposto àquele que Ele havia seguido, porém, com o mesmo destino.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Ele, Ela e A Outra II

O sol espreitava timidamente por entre as nuvens e a cortina quase transparente da janela do quarto. O relógio digital marcava 6 horas e 59 minutos quando Ela acordou, abruptamente, possivelmente de um qualquer sonho menos agradável. Ainda sem acordar com o verdadeiro termo da palavra, porém sem estar a dormir, forçou as pálpebras para que se abrissem para poder ver as horas. “Ainda é cedo”, pensou, e enquanto se virava, viu-o dormir a seu lado. Esboçou um sorriso, e disse para si mesma, “É hoje”, passando suavemente a sua mão pelo rosto do amado, e adormeceu.

Agora o mesmo relógio marcava as 10 horas e 33 minutos, preciso instante em que Ele acordou. Depois de ver as horas, deitou-se de barriga para cima, fitando o tecto com o braço apoiado sobre a testa. Suspirou. Finalmente conseguira dormir. Há noites que dava voltas e voltas na cama, incomodando-a ocasionalmente, provocando os típicos resmungos de quem quer dormir mas que se vê impossibilitado pela agitação do companheiro. Tentando não a acordar, levantou-se suavemente dirigindo-se para a casa de banho. Lavou a cara, e ficou alguns instantes a fitar-se a si próprio no espelho. Olhou para o lado, e via-a dormir com um olhar de culpado. Não sabia como fora capaz. “É hoje”, interiorizou ao largar a toalha no suporte. Vestiu um fato de treino rapidamente para ir comprar pão à mercearia que ficava mesmo ao fim da rua. Dou lado oposto da estrada, estava A Outra. Sensual como sempre, seguida religiosamente pelos olhares de todos os homens que se encontravam na esplanada na qual trabalhava. Por fim, os olhares cruzaram-se, e A Outra lançou-lhe um olhar sensual, mordiscando levemente os seus lábios carnudos realçados com o batom, acenando de seguida, ao qual Ele respondeu atrapalhadamente, como quem tenta evitar que se note que algo mais havia. Entrou na mercearia, sentindo-se observado, quase pressentindo o olhar fixo d’A Outra. Ao sair, agarrou o telemóvel fingindo digitar uma mensagem de forma a evitar o olhar provocador que lhe estava lançado como se de uma armadilha mortal se tratasse.

Ao chegar a casa, ouviu barulho na cozinha. Ela tinha acordado, e estava a preparar o pequeno-almoço. Largou o pão em cima da mesa, para se dirigir a ela, abraçando-a por trás. Ela sorriu, virou-se e retribuiu o abraço, com um longo beijo. Ele amava-a tanto quanto amava sentir aquele beijo sentido logo pela manhã. Tomaram o pequeno-almoço e planearam o que fazer naquele ensolarado sábado de primavera. Ela iria passar uma tarde de mulheres com as Amigas da Faculdade, e Ele cumpriria o habitual ritual de sábado composto por futebol e cerveja com os Colegas de Trabalho. Cada um preparou-se para o seu programa, encontrando-se no banho, que se prolongou com aquilo que já se poderá imaginar o que é. O relógio indicava que faltavam cerca de 15 minutos para as duas horas, e Ela foi a primeira a sair, despedindo-se com um beijo e um “Até logo”, com um sorriso de alegria e ânsia, que Ele não soube interpretar correctamente, dado o seu raciocínio se sentir inibido pela consciência pesada. Não passaram mais de dez minutos e também Ele saiu. Alheios ao facto de os planos expostos não passarem de farsas, Ele e Ela seguiram para o seu verdadeiro propósito.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Ele, Ela e A Outra I

Ela estava debruçada sobre o parapeito da janela do quarto, a soluçando enquanto as lágrimas lhe percorriam a face redonda. Com o peito da mão limpava as lágrimas, borrando a maquilhagem, enquanto fitava a lua cheia. Por momentos desejou partir para lá sem viagem de retorno. Apenas sentia que o seu mundo desabara há menos de uma hora, e não via como poderia reerguê-lo, pelo menos não naquele momento. Sentia que também ela tinha o direito de extravasar esporadicamente. Não queria olhar para trás. Ainda não se sentia preparada. E enquanto procurava em si forças para digerir tudo aquilo, devorava cigarros, um atrás do outro, como se isso pelo menos a acalmasse.

Sentado aos pés da cama, tremendo a perna freneticamente, Ele punha as mãos à cabeça, e não era preciso nenhum curso especializado em expressão corporal para perceber que o que lhe passava pela cabeça era “Foda-se, que é que eu fui fazer?”. Estava em tronco nu, com a braguilha desapertada e sem meias, como quem se vestiu à pressa. E assim fora. Pelo seu peito definido, o qual denunciava muitas horas semanais passadas no ginásio, escorriam grossas gotas de suor. No seu rosto poder-se-ia ver uma única lágrima corrida, embora fosse evidente que pouco ou nada faltaria para que mais se juntassem à lágrima solitária. Ocasionalmente Ele fitava-a na janela, enquanto fumava quase que de forma irracional.

A Outra era uma mulher atraente. As suas curvas eram definidas e expostas, pelo top curto cujo decote mostrava grande parte dos seios volumosos e arrebitados e pela mini-saia de ganga que vestia. O cabelo loiro e os olhos azuis, conjugados com uma boca de lábios carnudos faziam com que A Outra transpirasse sensualidade, como se da personificação do Sexo se tratasse. Pesasse embora o riso histérico e os tiques um tanto ou quanto irritantes, era a queca que muito bom homem gostaria de dar e contar a todos os amigos, o que não se afigurava assim tão inalcançável, dada a lacuna de inteligência da loira sensual.

O quarto estava completamente revirado. As gavetas da cómoda encontravam-se todas abertas e meio cheias, meio vazias, estando o seu conteúdo espalhado por todo o chão da divisão, bem como todas as fotografias e meros objectos decorativos que acumulavam pó por cima dela. O candeeiro de uma das mesas-de-cabeceira estava tombado, e a luz que dele provinha era intermitente, iluminando de forma errática o quadro sobre a cabeceira da cama, também ele longe de estar em perfeitas condições. (...)

domingo, 20 de março de 2011

Os Opostos IV

- Estás bem? – perguntou Tommy ao verificar que Joana estava consciente.
- Estou… Acho eu. – respondeu Joana, sem perceber ao certo com quem estava a falar.
Levantou-se vagarosamente, de tantas dores que sentia. Ao ver Tommy, recobrou as lembranças escassas da noite anterior, perguntando de seguida, com um tom agressivo:
- Que me fizeste? Porque me levaste da festa?
- Da festa? Qual festa? Deves estar a confundir. Encontrei-te caída no meio da estrada, deviam ser umas 4 horas da manhã. Estavas toda marcada, uma lástima, e achei melhor trazer-te para cá, em vez de te levar a casa. Juro-te que não fiz nada.
Joana estava confusa, não sabia como tinha ido parar à estrada onde Tommy dera com ela inconsciente. Tommy perguntou como fora lá parar, e Joana contara-lhe tudo. Desde a traição de Miguel até ao último copo que se lembrara de beber. Não sabia como nem porquê, mas Joana sentia que podia confiar em Tommy. Passaram-se horas, e disse tudo o que lhe ia na alma. No fim, foi como se lhe tivessem retirado o peso do mundo das costas. Até as dores pareciam ter atenuado. A conversa fluiu, e as semelhanças nos gostos eram impressionantes. Tommy estava no céu. A sua musa estava ali com ele a conversar, e tinham tanto em comum. Era como se há muito que se conhecessem. O tempo passou sem que dessem por isso, e já eram horas de jantar pelo que ele convidou Joana para jantar. Joana olhou para Tommy enquanto este andava atarefado de um lado para o outro na cozinha, a preparar a refeição. Era uma caixa de surpresas. Por instantes esqueceu-se do porquê de ali estar, de como lá chegara, e do que acontecera antes. Era como se fosse algo habitual, e isso era bom. Perguntou-se o quão cega andara para não reparar nele. Conseguira fazê-la rir e esquecer tudo, e até era atraente. Não era nada comparado com os surfistas ou jogadores de andebol com quem andara anteriormente, mas até nem estava nada mal, pensava para si, esboçando um sorriso. O jantar fora mais uma surpresa agradável. Tommy preparara uma massa à bolonhesa magnífica. O relógio de pêndulo da sala dava agora as 11 badaladas, e Joana decidiu que era tempo de regressar a casa. Provavelmente quando chegasse a casa iria ouvir um sermão de todo o tamanho, e ficar de castigo durante uma eternidade. Mas isso não interessava, porque conhecera Tommy. Não sabia como, nem porquê, mas sentia que aquela seria a primeira de muitas tardes passadas com ele, aqueles foram os primeiros sorrisos que deram juntos, e fora naquele dia que tudo começara. Depois de chegar a casa, levada por Tommy e despedindo-se dele com um abraço apertado e um sincero obrigado, deitou-se na cama, fitando o tecto, e pensando para si mesma:
- Há males que vêm por bem.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Os Opostos III

Joana abriu os olhos, lentamente. Sentia-se dorida, com dores pelo corpo todo. Não sabia onde estava. Apesar de acordada, não estava lúcida. Apenas abriu os olhos, e sem se mexer, observou o que conseguia, que não era mais do que o tecto e um candelabro trabalhado. Fechou novamente os olhos e tentou lembrar-se de como ali chegara, mas sem sucesso. Tentou então recuar mais um pouco, à sua última memória. Lembrava-se de ter saído das aulas e ir a casa tomar um banho e trocar de roupa, para ir encontrar-se com Miguel. Apesar de as coisas não andarem bem, uma vez que havia uma semana que o apanhara envolvido com Sandra, que por sinal, era uma das maiores oferecidas da escola. Tentara ultrapassar isso, e passar a tarde com ele, em vez de ir passar a tarde com a irmã mais velha, Alexandra, como era costume todas as sextas, era uma prova em como estava disposta a perdoar e a ultrapassar a traição. Por mais parvo e estúpido que pudesse parecer aos olhos dos outros, Joana conhecia o íntimo de Miguel, e os momentos que passaram tinham sido mágicos, quase. Mas aquela tarde provara que não havia volta a dar. Estavam estranhos, e nem na cama, onde sempre se entenderam, tinha funcionado. Frustrada Joana saiu de casa de Miguel pouco antes de jantar, sem sequer se despedir com um beijo. Sentia-se mal por gostar dele e saber que por mais que tentasse não conseguia ultrapassar a traição. Mesmo sem dizerem nada, ambos sabiam que a relação tinha ficado por ali. Saiu de casa de Miguel, apanhou o autocarro e foi até casa de Sónia, a sua melhor amiga, e por entre lágrimas e fumos a Lua tomava o lugar do Sol que passara o dia ofuscado pelas nuvens.

Sónia era a rebelde da escola. Nunca ninguém percebera como duas pessoas tão diferentes como Joana e Sónia se tinham tornado tão amigas. Enquanto Joana era a menina bonita e popular, Sónia era a rapariga rebelde, com roupas diferentes da maioria e frequentadora assídua de locais rotulados como dos “drogados”, facto que levava a maioria a pensar que a mudança de Joana se devia à companhia de Sónia.

Decididas a esquecer tudo e todos, pegaram no carro e foram para a discoteca do momento, que se encontrava apinhada devido à festa das listas de associação de estudantes. Determinada a esquecer tudo o que lhe ia na mente, Joana bebeu um copo, e depois outro, e outro, até lhes perder a conta. Começou a perder a noção de tudo, o chão parecia fugir provocando várias perdas de equilíbrio. Porém, como que se de um remédio instantâneo se tratasse, viu Miguel. Estava a dançar com Sandra. Agora de outra forma, sentiu o chão fugir-lhe dos pés, não que isso a fizesse perder o equilíbrio físico, mas emocional. Não podia acreditar que aquilo estava a acontecer. Sentia-se mal, usada por ele. Como seria ele capaz de ter estado com ela à tarde, e na mesma noite estar com Sandra? Deslocou-se ao bar novamente, e pediu o mais forte que houvesse ali para beber. E bebeu. Um copo, e lembrava-se de encontrar Miguel atrás do Café da Vila aos beijos com Sandra. Outro copo, e lembrava-se de como a tarde correra mal, de como se sentiam estranhos até na cama. Mais outro copo e a recordação estava à distância de uma rotação para trás, onde se encontravam eles aos beijos. E ainda mais outro copo, seguido de outro, até finalmente não sentir nada, como se todo o seu corpo estivesse sob o efeito de um anestésico forte. Sentiu alguém agarrá-la, dizer-lhe que ia ficar bem, e a única coisa que tentava dizer era o nome de Sónia, de quem há horas que não sabia nada, porém, não passavam de balbucios. Lentamente foi perdendo os sentidos, tentando ver o rosto de quem a levava, mas a vista estava turva, até ficar tudo escuro…

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Os Opostos II

Ainda se lembrava da primeira vez que a vira. Estava sentado nos bancos do pavilhão A quando a viu entrar. O vento ondulava-lhe o cabelo castanho-claro, dando a impressão de slow-motion. O seu sorriso cintilante, na altura de aparelho, era algo de extraordinário, pensou ele. Naquele dia, pensou para si próprio, conhecera a rapariga dos seus sonhos. Desde então nunca mais deixara de a observar, de ter a necessidade de saber dela, de a ver. Queria falar com ela, mas a sua timidez impedia-o de travar amizade ou sequer de trocar uma palavra que fosse além do “não fumo”, quando ela lhe pedia isqueiro. Chegou mesmo a pensar em começar a fumar só para ter um motivo para prolongar a conversa. Porém, optara por apenas comprar um isqueiro, mas constatou que não surtia o efeito desejado, uma vez que agora em vez de “não fumo”, dizia “de nada”, cada vez que ela agradecia.
Tommy raramente saía à noite, era normalmente um rapaz recatado, que preferia uma bela noite a ver filmes do que ir para uma discoteca ouvir músicas de “pisar o vinho e apontar o dedo ao Senhor”. Mas naquela noite, não sabia porquê, sentia vontade de sair. Possivelmente por causa da insistência do João e da Mónica, que o convidaram para ir ao bar lá da zona para comemorar os seus 4 anos de namoro. Talvez por isso, acedera à insistência, e agarrara no carro para ir em direcção ao bar. Volvidas algumas horas, alguns copos e muitas gargalhadas, já estava a caminho de casa, quando vê uma rapariga estendida no chão, no meio da estrada. Abrandou o carro, mas trancou as portas e não parou. Sabia que havia muitos casos de assaltos em situações semelhantes. Mas ao aperceber-se de quem era, parou subitamente o carro e precipitou-se em direcção à silhueta inanimada no asfalto.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Os Opostos I

Todos os dias Tomás, Tommy para os amigos, a observava de longe na escola. Ela, Joana de seu nome, era talvez a rapariga mais atraente em toda a escola. E popular. Quase toda a gente que interessava da hierarquia social da Secundária a conhecia, saía com ela à noite e estava presente numa das suas muitas fotos no Facebook. Era aliás através da rede social que Tommy sabia o que Joana fazia. Era daquelas raparigas que raramente dava um passo sem publicar no mural, e quando não o fazia, no dia seguinte, aquando a ressaca, publicava as fotos no seu perfil. “Quem me dera ter uma foto com ela”, pensou Tommy para consigo mesmo.

Tommy, por sua vez, era um rapaz praticamente invisível. Pouca gente conhecia, e pouca gente sabia quem ele era. Até mesmo Joana, que pertencia à sua turma desde o início do Secundário parecia nem sequer se aperceber da sua existência. Tommy não se destacava em nada. Não era nem o melhor nem o pior aluno da turma, não se vestia de forma diferente, não era demasiado alto ou baixo e raramente falava. Era o oposto de Joana, que se vestia com roupas provocantes, sempre actualizada dos conceitos e modas de cada época. Ouvia frequentemente Cristina e Ana atrás de si nas aulas de Matemática comentarem a indumentária da colega. Era também uma rapariga extremamente divertida e extrovertida. Talvez fosse por ser tão diferente de Tommy que este tanto se fixara nela. Às vezes dava por si horas a fio a ver as fotos dela no Facebook, a ver os comentários, as publicações, as notas. Tudo. Na escola passava muitos dos intervalos a vê-la ir para trás dos pavilhões fumar. Tommy vira Joana degradar-se aos poucos. Até entrar para a Secundária, segundo o que ouvira, Joana apenas tinha tido um namorado. Agora, passados 2 anos e uns meses, já lhes perdera a conta. Entre o João, capitão da equipa de Andebol da escola, o primeiro que se lembra de ver com ela, e Miguel, vice-campeão nacional de Surf, com quem estava agora, já haviam sido uns quantos. Todos tinham as mesmas características chave: bonitos, fortes e populares, daqueles por quem a população escolar feminina suspirara.

Agora, apesar de não perder o seu encanto, notava-se a diferença. Os intervalos a fumar ganza fizeram com que o seu aproveitamento escolar passasse de satisfatório para mau. Ouvia-a muitas vezes comentar à segunda de manhã com Sofia que não se lembrava do que acontecera nas noites do fim-de-semana, tal deveria ser a quantidade de álcool ou drogas consumidas. Tommy perguntava-se se não seria mesmo a junção das duas que causava esse efeito. Mas ainda assim, não se conseguia desprender de a observar, de a ver.

(Continua...)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Liberdade

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
Sol doira
Sem literatura
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como o tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quanto há bruma,
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

Mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...


Fernando Pessoa

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Meu amor

Meu Amor,


Sinto tanto a tua falta. Olho em redor e não te vejo, não estás aqui do meu lado na cama, para te encostares a mim, e antes de irmos dormir, segredares ao meu ouvido que me amas. Este silêncio de ti mata-me. Agora, o único som que me faz lembrar de ti é o ruído da ponta da caneta a escrever nesta folha de papel. E é com estas palavras mudas que te escrevo agora que tento, de certa forma, sentir-me mais perto de ti. É como quando estava a falar contigo, e sem dar conta, tu adormecias. Agora é isso que faço. Falo contigo, apesar de saber que não me ouves, que não me vais responder. Mas ainda assim, falo. Alivia-me o peso da solidão e da ausência. Da tua ausência, que tanto me custa sentir. Amo-te. Amo-te tanto, que nenhuma carta será suficientemente grande, profunda ou realista para descrever isto que sinto aqui, bem no meu peito, na tua casa do nosso amor, o meu coração. Mesmo em pleno Verão, o Sol não me aquece como o teu abraço, não me ilumina como o teu sorriso. E mesmo que fosse Inverno, o frio e chuva que se pudesse fazer sentir, em nada se assemelha à tempestade em mim fruto da tua ausência. E assim ficou órfão o nosso amor, com a tua partida. Não sei se voltarás, não sei se algum dia voltarei a sentir o teu beijo nos meus lábios. Percorri todas as ruas, todas as avenidas, subidas e descidas, mas em vão. Em todas elas se fazia notar a tua ausência. Em nenhuma delas te encontrei, e em cada uma delas me fui perdendo. Sou uma sombra do que fui outrora, agora que aqui não estás, a meu lado, segurando a minha mão, dizendo-me para seguir em frente, porque estarias lá para e por mim. Não sei se algum dia chegarás a ler esta carta, não sei sequer se ela chegará até ti, mas precisei de escrever estas palavras para ti.

Despeço-me de ti, com um beijo de saudade e um até já, do sempre teu,
Amor

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A vida é assim

Hoje como sempre tive de apanhar o autocarro para casa. Normal, é a rotina. Só que hoje, não sei porquê, fiquei a olhar para o autocarro a partir. Não sei porquê, mas isso pôs-me a pensar que tudo nesta vida é como uma paragem de autocarros: os autocarros vão e vêm, com muitas ou poucas pessoas, diferentes ou iguais, que também elas vão e vêm.

A vida é assim. Fecha os olhos. Imagina-te numa paragem, igual àquela na qual apanhas o autocarro todos os dias para ir para a escola ou trabalho, ou simplesmente passear. Podes até nem andar de autocarro no teu dia a dia, mas imagina-te na paragem pela qual passas ou sabes onde é. São tantos os autocarros. Tantos os destinos. E tu tens de escolher qual o autocarro, qual é que é o mais indicado para te levar para onde queres ir. E nesse autocarro, vão pessoas, às vezes muitas, às vezes poucas, mas únicas, diferentes das que encontrarias se tivesses escolhido outro. Chegas ao teu destino, e sais, numa outra paragem. Alguns saem contigo, e outros, continuam nesse autocarro, para outras paragens, havendo ainda aqueles que saíram antes de ti.

A vida é assim. Tu escolhes o caminho que segues, o teu autocarro. Nesse caminho, as pessoas vão e vêm, entram e saem. Criam-se amizades e inimizades. Nascem e morrem amores. Tantos e tantos sentimentos, encarnados por pessoas. Essas pessoas são os passageiros do autocarro. E as paragens são como as fases pelas quais passamos, nas quais alguns nos acompanham, outros já nos deixaram antes, e outros deixam-nos para trás.

A vida é assim.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Gostava de voltar atrás no tempo

Gostava de voltar atrás no tempo. Oh sim, como gostava de o poder fazer. Não para emendar erros, fazer as coisas de outra maneira. Nada disso. Tudo o que fiz ou não fiz, tornou-me na pessoa que sou hoje, com defeitos, que como se diz, talvez já nem defeitos sejam, talvez seja feitio, mas também com algumas qualidades que, se não tivesse errado onde errei, se não tivesse batido com a cabeça naquelas paredes, não as teria. Cada passo errado que dei, fez-me crescer. Cada cabeçada na parede que dei, e não foram poucas, fortaleceu-me. "O que não nos mata, torna-nos mais fortes". E a vida é mesmo assim, feita de tentativa-erro, tentativa-erro, até acertar.
Quando digo que gostaria de voltar atrás, refiro-me a ser criança. Lembro-me perfeitamente de ser criança... Era tão bom. Ter gosto em levantar cedo, só para ver os desenhos animados; entreter-me com toda e qualquer coisa, desde um simples ramo de uma árvore a uma pedra de calçada. Era tudo tão simples, tão linear. A inocência que brilhava nos meus olhos, a ingenuidade. Tudo era tão fácil, ou pelo menos parecia. Fazia as coisas sem ter de me preocupar com as consequências, porque o pior que me podia acontecer era levar uma palmada ou ficar de castigo. Agora custa-me levantar cedo, seja para ir para a escola ou para o estágio, e ao fim-de-semana só quero dormir. Tenho dias em que o tédio fala mais forte que qualquer outra coisa, e fico às vezes parado a olhar para a parede a pensar no que fazer. Os sentimentos agora têm forma, e às vezes fazem-me mal. Tenho consciência das consequências, e às vezes preocupo-me demais com elas. Acho que a palavra chave é preocupação. Quando crescemos (ou pelo menos, quem cresce), ganhamos isso mesmo: Preocupação. A responsabilidade, e tudo o que dela deriva, vem da preocupação que temos. Preocupação em nós, no nosso futuro, no futuro de quem e do que nos rodeia.
Nessa altura, sem saber, eu era uma parte do melhor que há no mundo, porque já dizia Fernando Pessoa, "o melhor do mundo são as crianças".

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A vida vai tão depressa...

Demoramos tanto tempo até nascer, até vivermos realmente. Mas essa vida é ceifada tão rapidamente que por vezes nem damos por isso. Os anos passam e vamos vendo os outros morrer, dos mais velhos aos mais novos, dos mais afastados aos mais próximos. E nós cá ficamos, a ver os outros partir. É cruel, como existem tantas formas de morrer, mas apenas uma de gerar vida.

Vemos aqueles que amamos, aqueles que detestamos, ou aqueles que simplesmente vemos, a morrer. Vemos alguém perder a vida, dia após dia, sucumbindo a uma qualquer doença, e tantas que existem agora; vemos alguém ser atropelado, mesmo diante de nós, por causa de um qualquer louco(a) ao volante, que por vezes leva também consigo alguns dos passageiros do carro; vemos pessoas morrerem afogadas por um capricho da Mãe Natureza; vemos alguém perder a vida por causa de um qualquer bombista fanático; vemos.... E vamos vendo, vamos assistindo a isto, no "camarote de honra", mas sem honra nenhuma por lá estar. Damos por nós a pensar:
- E quando é que será a minha vez?

Eu dou por mim a pensar nisto. Como será essa sensação? Morrer. Será que existe a tal luz? Será que vamos para algum lado? São tantas as perguntas, tantas as dúvidas, tantas incertezas.

Algum dia será esse dia, o dia de Morrer. Não quero saber como ou quando. Nasci destinado a morrer, como todos nós. É triste que na vida, em toda ela, a única coisa que temos por 100% certa seja a morte. É cruel.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

The Man Who Can't Be Moved

O calor era intenso, pouco faltando para que se atingissem os 40º de temperatura, motivo pelo qual se noticiava o alerta laranja alargado a todo o país. Na esquina, cuja localização é irrelevante, cruzavam-se por dia centenas de pessoas, não fosse ela uma das esquinas mais movimentadas da cidade. Era uma esquina normal, como tantas outras, onde se encontravam duas ruas normais, por onde passavam carros normais, conduzidos por pessoas normais, com vidas nem sempre normais, mas isso são outros quinhentos. Aquela era uma esquina como tantas outras, para a maior parte dos que lá passavam. Representava apenas uma parte do seu percurso para casa, trabalho, escola ou simples passeio.

Era uma esquina a quem ninguém dava importância, porque ao fim ao cabo era uma esquina. Apenas a mencionavam quando ocasionalmente havia um cano rebentado e a água causava transtorno a quem passava, quando o Sr. Costa, agente da polícia se lembrava de multar os carros mal estacionados ou quando a loja de roupa da esquina mudava de gerência, que por sinal, ainda era com alguma frequência. De resto, não se reparava na esquina.

E era mais um dia normal, naquela esquina normal, até que um jovem, de nome Isaac, se sentou no meio relativo da mesma esquina, que por ele lá estar, deixou de ser normal. Isaac sentara-se lá, com a sua guitarra, com a fotografia de uma rapariga, e um letreiro escrito manualmente numa cartolina branca, dizendo “Por favor, volta”. E Isaac começou a tocar na sua guitarra, músicas de amor, músicas da mais lusitana das palavras, a saudade. Entre músicas conhecidas e desconhecidas, mais calmas e mais mexidas, foi captando a atenção da massa popular que por ali passava, mas que parava para ouvir o jovem cantar. Algumas pessoas atiraram algumas moedas para o chão, pois julgavam que era por dinheiro que ele ali estava, porém, estavam errados.

Isaac não estava falido, mas sim, de coração partido.

Tudo começara há poucos meses, quando numa tímida manhã onde a Primavera despertava, dois jovens desconhecidos se encontraram. Encontraram-se literalmente, no que na gíria se chamaria de um grande “encontrão”. Cat, alcunha dada pelas amigas logo nos primeiros anos de escola a Catarina, viu todos os seus livros e cadernos espalhados pelo chão. Isaac apressadamente ajudou a reunir tudo o que se havia espalhado pelo chão daquela até agora normal esquina. Foi então que houve aquele olhar, que havia de ser o primeiro, aquele que tantas e tantas vezes haviam de recordar em noites onde apenas os corações falavam, onde o diálogo de batimentos cardíacos se ouvia em uníssono, onde o calor dos corpos os unia num só. Aquele fora o princípio de algo especial. Desde essa manhã de Primavera que Cat e Isaac se tornaram parte do dia-a-dia um do outro. Primeiro com mensagens e telefonemas até o sol nascer, depois com simples idas ao café conversando temas banais, com o primeiro beijo, com a primeira noite de amor. O tempo passou, e a cada segundo que passava, Isaac sentia-se mais dependente de Cat. Ela não era agora simplesmente o seu amor, a sua namorada. Era o ar que respirava, era o calor que o aquecia, o sol que lhe dava luz. Era tudo. E aparentemente tal sentimento era recíproco. Pelo menos até àquela manhã. Isaac acordara, pensando ver no seu telemóvel a habitual mensagem de bom dia, uma vez que era terça-feira, e ela acordava mais cedo para ir ajudar a mãe no trabalho. Mas assim não foi. À mensagem que enviou a dar o bom dia a Cat, Isaac não teve qualquer resposta. E as horas passaram, até chegarem as 11 horas. Nada. Nem uma mensagem, nem um único sinal de vida. Aproveitou para ir até casa dela, que ficava a pouco mais de 10 minutos da escola, para ver o que se passava. Tocou insistentemente à campainha, mas sem resposta. Pelo menos, não a resposta desejada. Joana, a vizinha do rés do chão direito, andar por baixo do de Cat, ao ouvir a insistência no toque da campainha, apareceu à janela, dizendo com palavras secas:

- Elas não estão, mudaram de casa. Andavam já há uma semana a empacotar as coisas, e ontem à noite entregaram a chave à minha mãe, porque não tinham tempo de a deixar com o senhorio.

Aquilo não fazia sentido. Cat não ia mudar assim de casa, não sem lhe dizer nada, não sem mais nem menos. Aquilo simplesmente não podia ser verdade. Sentiu-se estupidificado, sem saber que dizer, balbuciando a Joana um agradecimento que ela provavelmente não percebera. Tentou ligar-lhe para o telemóvel, mas a única mensagem que ouvia era:

- O número para o qual ligou não tem voicemail activo…

Ligou vezes sem conta, e a mensagem era sempre a mesma. Não conseguia acreditar no que estava a acontecer. Era demasiado para a sua cabeça. Como podia ela ter saído assim? Por mais que tentasse, não conseguia encontrar uma explicação plausível para isto. Caminhou sem rumo, no que lhe parecera horas. O peso da guitarra, ou talvez os quilómetros que já havia percorrido, faziam-lhe doer as pernas. Sabia onde estava, mas no entanto, sentia-se perdido. Quando deu por si, estava na esquina, naquela esquina, onde tudo começara. Foi então que uma ideia que tinha um tanto de louca como de genial lhe ocupou o pensamento. E se ficasse ali, onde tudo começara? Não conseguia pensar, mas talvez fosse o que para ele fizesse mais sentido. Agarrou na mala da guitarra, onde tinha a cartolina para um trabalho, e escreveu “Por favor, volta”. Sentou-se na esquina, onde provavelmente há alguns meses estavam espalhados os livros e cadernos de Cat, onde tinha havido aquele olhar, que tanto o marcara. Foi então que uma lágrima solitária lhe percorreu o rosto. Colocou a cartolina no chão, onde ficou visível a quem passasse. Tirou a fotografia que tinha na carteira, de um dia em que ele nunca pensava vir a estar em semelhante situação.

Tudo isto levava-o a estar ali, a tocar tantas músicas quantas sabia, tantas quantas lhe faziam lembrar o que sentia. As pessoas que passavam, não entendiam a sua dor. Não entendiam que o seu mal não era dinheiro. Antes fosse, era o que pensava. E ali ficou.. Uma ou outra pessoa que passava murmurava algo como:

- Esta juventude, mete-se na droga depois dá nisto! Havia de ser meu filho…!

Passaram-se as horas. O sol pôs-se e nasceu, e Isaac continuou ali. Coisas triviais como a fome, a sede, o calor ou frio, pareciam não o afectar. E com o passar das horas, dias. Enquanto isso, Isaac permaneceu ali. Durante quatro dias e cinco noites. Nada. Nem uma simples notícia de Cat. Não sabia o que fazer. A fome e a sede falaram finalmente mais alto, consumindo-lhe todas as energias, que ele nem sabia possuir. Durante quatro dias e cinco noites, não comeu, não dormiu, não bebeu. Isaac acabara por mostrar, mesmo que sem querer, a capacidade de resistência de um ser humano. Por fim, Isaac perdeu as forças, ficando inanimado, inerte, no chão da esquina. Até ser socorrido, passaram 5 minutos. As mesmas pessoas que o haviam aplaudido no primeiro dia, enquanto tocava guitarra, passavam agora por ele, deitado no chão, sem sequer se perguntar se ele estaria bem. Tinha sido tarde demais para Isaac.

A desidratação e a fome levaram a melhor. O cansaço e a angústia tinham levado Isaac ao seu extremo. A esperança de que Cat voltaria, fez com que aguentasse, mas não eternamente. Isaac perecera então ali, naquela esquina que era normal para muitos, que tinha sido especial para ele, que se tornara na sua sepultura.

No funeral aparecera metade da vila, que passivamente assistira a toda aquela degradação que tinham sido os últimos dias de Isaac. Inclusivamente, por entre choros da família e amigos mais próximos, uma rapariga presente pareceu bastante abalada. Havia quem comentasse que era Cat, mas antes que fosse possível perguntar-lhe o que fosse, a misteriosa rapariga desapareceu.

FIM

(ideia retirada da música de The Script - The Man Who Can't Be Moved)

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

O rapaz das 5

Eram precisamente 5 horas da tarde, anunciadas pelas cinco badaladas do sino da igreja. Ao som das badaladas, caiu a última folha da árvore do jardim em frente à igreja, como que selando o Outono e apresentando oficialmente o Inverno. O céu, já bastante escuro, não tinha uma única nuvem, fazendo prever uma bela noite estrelada, uma perfeita noite para namorar, não fossem os 2º que o termómetro da farmácia marcavam. E como sempre, lá ia ele.
Ele não se sabe quem é. É apenas, como diz a Dona Gina, "o rapaz das 5". Todos os dias, sem excepção, precisamente às 5 horas em ponto, ele passava. Ninguém sabia de onde ou para onde, por quê ou por que não. Sabiam, apenas e só, que àquela hora, ele passava. Fizesse chuva, fizesse sol, fosse vendaval ou dia normal, lá ia ele. Já todos na vizinhança se perguntavam quem era o rapaz.
Quanto a ele, apenas se pode descrever o físico. Era alto, era provável que no seu documento de identificação, que nem se sabe se era bilhete de identidade ou cartão único, tivesse uma altura de 1,90m, ou alguma medida muito perto dessa, e quanto ao peso, parecia ser o ideal, pois não era nem gordo, nem magro. Não devia ter mais de 17 ou 18 anos. Tinha o cabelo curto, castanho, com um penteado-despenteado seguro por uma boa dose de gel. Os olhos só se sabia que não eram claros, pois nunca ninguém o tinha olhado nos olhos para saber qual a sua cor. Vestia-se bem, com um estilo clássico moderno que encaixava perfeitamente com todo o resto. Era, segundo as jovens que o viam passar, um belo rapaz.
Sobre ele, tirando o que saltava à vista, só sabia que não se sabia nada na verdade. Sabia-se que não andava em nenhuma escola nas redondezas, pois os jovens do bairro nunca o tinham visto na escola, não trabalhava em nenhum dos negócios do Sr. Miguel, o dono de quase tudo que havia naquelas bandas, desde o supermercado onde trabalhava a Dona Gina, ao Talho do Bairro, às fábricas de confecção, calçado e afins.
Nunca ninguém se tinha perguntado o porquê de terem reparado no rapaz. Ele simplesmente passava, todos os dias, às 5 horas da tarde. Nunca tinha incomodado ninguém, nunca tinha sido mal educado com ninguém, mesmo quando o Tozé o molhou ao passar com o carro por cima de uma poça. Essa foi a única ocasião em que se tinha ouvido a voz dele:
- Não faz mal.
Foram as únicas palavras proferidas pelo rapaz das 5, em resposta ao pedido de desculpas do Tozé.
Certo dia, Joana, neta de Dona Gina, movida pela enorme curiosidade que o rapaz das 5 causava a todos lá do bairro, decidiu segui-lo. Como sempre, entre a quarta e a quinta badalada do sino, ele cruzava a esquina, atravessando o jardim em frente à igreja, desaparecendo depois de atravessar a estrada e virar para o lado da casa da Rita. Tentando passar despercebida, Joana seguiu-o. Tal como ele, atravessou o jardim e a estrada, e virou para casa da Rita, mas não o viu.
Nesse dia, ninguém viu mais a Joana, nem no outro, nem no dia seguinte a esse. Ninguém sabia dela. Também ninguém sabia que ela tinha seguido o rapaz das 5. O reboliço no bairro era tanto com o desaparecimento de Joana, que ninguém tinha reparado que desde o dia em que ela desaparecera, nunca mais se vira o rapaz das 5.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Herói Desconhecido

O Homem de quem vou falar hoje é verdadeiramente um Homem com um "H" dos grandes. Aristides de Sousa Mendes foi um dos grandes heróis da 2.ª Guerra Mundial, embora muitos desconheçam tal facto. Soube dos feitos deste senhor numa exposição na escola, quando andava no 7.º ou 8.º ano. Fiquei espantado. Não sabia que um português tinha feito tanto para salvar tanta gente.
Aristides de Sousa Mendes (Cabanas de Viriato, 19 de julho de 1885 — Lisboa, 3 de abril de 1954), era Cônsul em Bordéus aquando a invasão nazi em França, decorria o ano de 1940. Sousa Mendes desafiou expressamente as ordens de António Salazar, que chefiava o governo na altura, ao conceder cerca de 30 mil, repito e destaco, 30 mil vistos de entrada para Portugal, permitindo assim a milhares de famílias fugir do holocausto.
Licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra e fixou-se na capital, no ano de 1907. Aristides ocupou diversas delegações consulares portuguesas pelo mundo fora, entre elas: Zanzibar, Brasil, Estados Unidos da América. Foi também Cônsul na Bélgica, onde conviveu com Albert Einstein.
Com a invasão Nazi a França, Aristides contraria as ordens expressas de Salazar para não emitir vistos a "estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou em litígio, os apátridas e os judeus". Juntamente com a sua família e um rabino belga, passou vistos em quase tudo que era papel que existia. Desta forma, seria mais fácil fugir para os Estados Unidos, onde se livrariam do caos em que se encontrava a Europa em geral.
Depois de retornar a Portugal, foi destituído do cargo, proibido de exercer direito, retiraram-lhe a carta de condução, e viveu muito da solidariedade alheia, principalmente da comunidade judaica. Acabou por ficar na miséria, com a venda dos seus bens, a morte da sua esposa e a emigração dos filhos. Diz-se também que após a morte da mulher viveu com uma amante francesa que em muito ajudou para o estado miserável em que se encontrava.
Acabou por falecer a 3 de Abril de 1954, num hospital de franciscanos. A sua miséria era a tal ponto que não tinha roupa própria, acabando por ser enterrado com o hábito franciscano.

Quando soube disto, fiquei revoltado. É assim que retribuem o que este Homem fez? Salvou milhares de vidas, imaginem a quantidade de gente que por aí anda nesse mundo fora que sobreviveu, que nasceu, que casou, através dos feitos deste Homem. E no fim acaba na miséria, sem sequer ter o que vestir. Por estas e por outras é que às vezes me pergunto se vale a pena fazer o bem. Ele fez, e vejam como ele acabou.

(Para mais informações, clica aqui.)

domingo, 2 de janeiro de 2011

Era uma vez... - Parte V

Entreabri os olhos para ver onde estava, tentando olhar em redor. Senti a máscara do que pensava ser oxigénio no meu rosto, tendo o pescoço imobilizado por uma daquelas coisas que se vêem nas novelas e nos filmes, que não sei como se chamam. Ouvi alguém, não sei se enfermeiro, médico ou bombeiro dizer:
- Está consciente, está consciente!
A dor era intensa. Pensava em como descrevê-la, mas não consegui. Era algo completamente inexplicável, impossível de quantificar. Voltei novamente a perder os sentidos, depois de sentir-me a deslizar através da maca na qual eu seguia, no que eu julgava ser os corredores do hospital. Quando recuperei a consciência, já estava num quarto, já não me sentia tão mal, não sentia as dores, na verdade, sentia que não sentia coisa nenhuma. Só o facto de respirar me fez sentir que ainda existia vida em mim. Olhei para o lado e lá estava ela, a minha mulher, a dormir no sofá adjacente à minha cama, numa posição de quem tentara lutar, embora em vão, contra o sono e o cansaço. Senti a sua mão quente a segurar a minha. Esbocei um sorriso. O coração acelerou, e uma lágrima correu-me no canto do olho. Emocionei-me. Eu sabia que ela tinha estado comigo todo aquele tempo, passara a noite segurando-me a mão. Lembro-me de a ouvir dizer que me amava, e que estaria sempre ali, no que pareceu ter sido um sonho real. Por ela tudo valia a pena, e lamentei por não ter estado sempre lá para ela como ela estava incondicionalmente para mim. Começo a ouvir ao longe o som de passinhos no corredor, tal como tinha ouvido quando acordara na manhã anterior. Sabia que os meus filhos vinham aí. Mais um motivo para sentir que valia a pena, mais uma lágrima que me percorreu o rosto. A porta abre-se com o reboliço habitual das manhãs de todos os dias normais. Vejo de seguida a minha irmã, seguida do Tom e da minha mãe. Com isto acorda a minha mulher, que me presenteou com um sorriso. Estavam todos ali. Os mais chegados, aqueles que sendo sangue do meu sangue, me eram mais importantes. Sorri novamente, desta vez sem lágrimas. Os meus filhos saltaram para cima da cama, abraçando-se a mim como nunca o tinham feito, como se fosse a última vez ou como se já não me vissem há muito tempo.
- Belo susto não maninho? - disse a minha irmã, em tom trocista, enquanto se aproximava para me dar um beijo na testa.
- Nem me digas nada, isto de ter acidentes não é lá muito cómodo. Vou ver se arranjo outro hobby, um menos prejudicial à saúde! - brinquei eu, causando uma gargalhada no grupo.
- Espero bem que sim, olha que a tua mãe está a ficar velha para sustos destes! - rematou a minha mãe.
Estivemos ali mais um tempo, na conversa e a brincar, como há muito não fazíamos. Nem parecia que estávamos no hospital e que eu tinha tido um acidente de carro. Apesar do ligeiro desconforto que sentia, causado pelas mazelas do acidente, estava bem, sentia-me bem, porque todos os que ali estavam faziam-se sentir dessa forma. Foram essas pessoas que me animaram nos momentos mais complicados, que estiveram sempre lá com a conversa ou gesto certo. Aquela era a minha verdadeira família, aqueles que eu sabia que independentemente do que acontecesse, estariam sempre lá. Reuniram-se todos em redor da minha cama, e subitamente foi como se sentisse o tempo parar. Olhei para eles, um a um, como se tirasse uma fotografia mental. Era como se aquela fosse a última vez que os veria. Nisto, e interrompendo o meu momento de reflexão, entra a enfermeira no quarto:
- Lamento imenso mas vão ter de se retirar, o Sr. Filipe tem de tomar a medicação e descansar, e se tudo correr bem, o Dr. Isidro diz que amanhã ele já terá alta.
Todos se despediram com um beijo ou abraço e foram saindo, até eu ficar só, enquanto a enfermeira me dava os medicamentos. Fiquei ali um pouco, a fitar o vazio. Senti a minha mente leve, a flutuar. Pensei em tudo. Nos meus filhos, na minha mulher, na minha mãe e irmã. Ainda há pouco tinham saído e eu já sentia a sua falta. Pouco a pouco os olhos foram fechando, fechando, até eu adormecer.


Acordei. Vi as horas, eram 8 em ponto. Levantei-me, e dirigi-me praticamente de olhos fechados até à casa de banho. Fiz o meu chichi matinal. Normal. Fui então até ao lavatório, lavei as mãos e o rosto. Olhei para o espelho, e não notei qualquer diferença. Era eu, mas não o eu que tinha uma mulher, três filhos e mais anos em cima. Era eu, de 20 anos, que me estava a levantar como sempre, para mais um dia como tantos outros, um dia normal, e a única diferença era o facto de ter dito um sonho, tão real, que por momentos cheguei a pensar que tudo era realidade. Mas não passara isso de um sonho, um sonho que um dia mais tarde viria a contar àqueles que, sem saber, fizeram parte dele.

FIM