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sábado, 25 de dezembro de 2010

Era uma vez... - Parte IV

Perdi a noção do tempo. Estava inconsciente, não sabia se tinha passado um segundo, um minuto ou uma hora. Tentei abrir os olhos, mas em vão. Ainda sentia os ouvidos entorpecidos, parecia que todos os meus sentidos estavam adormecidos. Tentei mexer-me mas não consegui. A dor aguda parecia consumir-me toda a energia. Estava com aquela sensação de estar num precipício, e a dor empurrava-me cada vez mais para o abismo. Estava à beira do colapso.
Repentinamente, estava sentado numa sala de cinema, completamente vazia. Não tinha mais dores, e sentia-me bem. Olho para a tela, e vi o filme. Não era um filme qualquer. Eram todos os momentos que para o bem ou para o mal, me tinham marcado. Ali fiquei, no que me pareceram ao mesmo tempo horas e simples segundos. Fiquei como que hipnotizado, a ver tudo aquilo. Vi pessoas que já não via há muitos anos, pessoas que via todos os dias e pessoas que nunca mais voltaria a ver. Vi momentos que me fizeram sorrir, momentos que me levaram a chorar, e tantos, tantos momentos. Mas aí caí na realidade: como seria possível eu estar ali, quando estava a caminho de casa no meu carro? Tinha a reunião na manhã seguinte, precisava descansar, e não sabia como tinha ido ali parar. Olhei para o meu relógio, eram 3h45, mas reparei que o ponteiro dos segundos estava parado. Mais uma coisa que me deixava intrigado. Eu sabia que a última vez que tinha visto as horas eram precisamente 3h45. Como seria possível? Eu estava completamente desnorteado. Não sabia como tinha ido ali parar, não sabia como sair dali, não sabia como tinham aquelas imagens e muito menos sabia o que estava ali a fazer.
- Tantas perguntas nessa cabeça, Filipe. - Disse uma voz, vinda lá do fundo.
Era uma voz de homem, serena mas que não deixava de ser masculina. Procurei o seu dono, mas não vi ninguém. Nem um único movimento, nada.
- Quem está aí? - Perguntei eu.
Mal acabo de dizer isto, vejo uma luz, intensa, oriunda do que eu calculei ser a porta de entrada.
- Isso... Isso é uma pergunta difícil de responder.
Vejo uma figura, não a sair da luz, mas sim, a trazê-la para perto de mim. A cada passo que o sujeito dava, sentia uma paz interior crescente, cada vez mais intensa. Ele caminhava até mim, lentamente, enquanto a luz se ia tornando gradualmente mais suportável à vista. Era realmente um homem, que aparentava ser de meia idade. Os cabelos eram castanhos, assim como a sua barba. A sua expressão era afável, e irradiava serenidade, muito devido ao seu vestuário, todo de branco. Sentou-se a meu lado, e antes que pudesse dizer o que quer que fosse, disse-me:
- Filipe, Filipe, que belo trabalho que foste arranjar hum?
- Eu... Eu... Eu não sei o que quer dizer com isso... Onde estou? Como vim aqui parar? Quem ...
- Calma. Tudo a seu tempo. - Interrompeu-me ele. - Hoje tiveste um dia e tanto, não foi? - constatou ele, apontando para a tela.
Passavam agora as imagens do meu dia: o acordar, sair de casa, ir para a empresa, almoçar... Tudo. O meu cérebro estava todo embrulhado. Eu sabia o que era aquilo. Mas não queria acreditar. Não podia estar a acontecer o que me estava a passar pela cabeça. Simplesmente não podia ser. Quando olho para o ecrã, vejo-me a conduzir. Vejo o carro a vir em contra-mão, a buzinar e a fazer-me ir contra uma árvore na berma da estrada. Senti um aperto no coração. Aquilo estava mesmo a acontecer-me.
- Pois é Filipe, isto está mesmo a acontecer. O outro carro ia em contra-mão, e tu, para te desviar dele, sofreste um acidente. Estás entre a vida e a morte. - disse-me, como que lendo os meus pensamentos.
- Entre a vida e a morte? Mas como estou aqui...? - perguntei eu, diminuindo o tom de voz, concluindo - então tu és...?
- Isso mesmo. Não diria em carne e osso, mas sim. Sou eu. - respondeu ele, sorrindo.
Eu não podia acreditar no que estava a acontecer. Eu estava ali, meio morto, meio vivo, e com Ele. Eu sempre fora um pouco descrente numa existência divina, apesar de sempre ter acreditado que existia algo superior a nós.
- Então tu és mesmo Deus?
Senti-me estúpido a perguntá-lo, mas era tudo demasiado surreal para acreditar assim à primeira.
- Deus, Alá, Jeová, sei lá. Tenho tantos nomes, nem sei se me lembro de todos eles. -respondeu, argumentando - A verdade é que sou só um, só uma figura, um só. Mas vocês mortais, humanos, têm de inventar sempre algo para se separarem, para terem mais um motivo para criar conflitos. Eu tentei, mas não vos consegui criar à minha imagem, como os cristãos fazem querer. Mas vá, chega de conversa fiada, acho que estás mais interessado em saber como e porquê estás aqui. - concluiu.
- Sim, eu... eu não mereço, eu... ainda tenho tanto por viver, porquê? Desculpa mas não consigo entender...
- Eu entendo as tuas dúvidas. Não és o primeiro, e duvido que sejas arrogante o suficiente para pensar que serás o último. Tudo acontece por um motivo. E tu, e tudo o que te acontece, não é excepção. Repara, fizeste as contas do tempo que tens trabalhado, neste último ano? E o tempo que passas com a tua família?
Mais uma vez passavam imagens no ecrã. Agora imagens que eu nunca tinha visto. Vi o primeiro aniversário do meu filho mais novo. Estavam todos alegres, os seus amigos estavam lá todos, e ele soprou as velas do bolo, mas sem sorrir. Vejo-o perguntar à mãe:
- Papá? Papá?
- O papá não consegui vir a tempo filho...
Vi a decepção no seu olhar. Não sabia como era possível um bebé tão novo ser tão expressivo. Senti uma lágrima correr-me o rosto. Como podia eu ter faltado a este momento?
- Estavas no Porto, para fechar um negócio. Podias ter dito que não podias ir, mas não o fizeste. Tens aí o resultado.
De seguida, vejo o dia em que o mais velho tinha ganho a taça de campeão de juniores de futebol. Ele recebe a bola, finta um defesa e marca um golo. Toda a sua equipa estava de volta dele, a festejar. O olhar dele percorria a bancada. Estava à minha procura, mas eu não estava lá. Mais uma vez a mãe acenou com a cabeça, dizendo que não. Mais uma vez, o pai não estava lá.
- Eu lembro-me disto. Fiquei retido em Frankfurt por causa do mau tempo que fazia na Alemanha. - disse eu, cabisbaixo. Estava a aperceber-me de tudo o que tinha perdido.
- E muitos mais podia mostrar-te, mas acho que percebeste o que quero com isto. É óbvio que o dinheiro é muito importante. Providencia alimento, conforto, educação... Mas será que a tua ausência não é um preço demasiado alto para eles?
- Eu... Eu tive uma infância complicada. Passei fome. Nunca tive uma vida muito confortável. Tive de aprender desde cedo a viver com pouco, e não queria o mesmo para os meus filhos. Eu sei que o dinheiro não é o mais importante. Sou a prova disso. Vim do nada. Mas tudo o que passei, guardei para mim. Cresci com isso. Foi tudo isso que me fez ser o que sou. Mas esse preço para mim foi alto demais...
- Talvez. Mas se não passasses por tudo aquilo, como serias hoje? Pensaste nisso? Nada acontece por acaso. Eu sei o que faço. Por isso é que estás aqui. Quero fazer-te ver as coisas de forma diferente. Agora já chega. Espero que tenhas aprendido a lição!
E antes que eu pudesse dizer o que quer que fosse, tudo se desvaneceu, como se de fumo se tratasse. Senti o ar encher-me os pulmões novamente. Lentamente, comecei a ouvir o som que me rodeava, e sentia a dor voltar. Os meus sentidos voltaram a ligar-se, e pensei para mim:
- Estou vivo!

Continua (...)

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