A manhã passou a voar. Por entre papéis e contas, telefonemas e e-mails não parei um segundo. Fiquei impressionado comigo mesmo com a perspicácia com que respondia a tudo. Era como se estivesse em piloto automático. Quando dei por mim já poucos minutos faltavam para as duas horas da tarde, muito por causa do roncar de fome do estômago. Levantei-me, agarrei no casaco e saí. Fui ao restaurante que ficava na esquina da rua da empresa, onde eu costumava almoçar. Olhei para a ementa que estava cá fora e optei logo pelo Bacalhau com Natas.
- Não é tão bom quanto o da minha mãe, mas, acho que fora de casa deve ser o melhor que comi. - Pensei para mim.
Entrei e cumprimentei a D. Mena, a dona do restaurante. Ela já sabia que quando era o bacalhau era para caprichar na minha dose.
- De quando não vale ser cliente frequente.
Sentei-me na mesa do costume, e logo de seguida o Eduardo, o empregado levou-me o jarro de vinho da casa, como sempre.
- O Bacalhauzinho está a sair Dr., e olhe que hoje a D. Mena caprichou!
Sorri. Sabia que a comida era sempre boa ali, independentemente do que fosse. Nisto chegou o prato, e realmente o Eduardo tinha razão, a D. Mena tinha mesmo caprichado. Seguiu-se a sobremesa: semi-frio de caramelo, que, como tudo o resto, estava divinal. Dirigi-me então para a caixa para pagar, enquanto procurava a carteira nos bolsos do casaco, sendo interrompido pelo gesto de ordem da D. Mena, enquanto dizia:
- Dr. deixe lá isso, hoje fica por conta da casa, é a prenda de Natal.
- Oh D. Mena, deixe-se dessas coisas, então com um almoço destes, nem posso pagar? - respondi, em tom de brincadeira.
- Paga para a próxima, deixe lá. É a minha maneira de lhe desejar um Santo Natal, o Dr. merece!
- Obrigado, um Bom Natal para si também! - disse eu, enquanto saía.
Fui então para o escritório, já estava quase na hora da reunião importante, e eu ainda tinha de verificar os últimos números. Quando cheguei já estava a Maria à minha espera, com os papéis na mão, começando logo a disparar:
- Está tudo aqui Dr. - disse, passando-me uma pasta cheia de papéis - já estão todos na sala à sua espera, boa sorte!
- Obrigado, bem preciso Maria, bem preciso!
Nisto dirigi-me para a sala de reuniões, mas, antes de entrar, parei, respirei fundo e disse para os meus botões:
- Calma, tu és capaz.
Entrei. Na sala estavam cerca de uma dezena de accionistas. Observei-os a todos num segundo, fazendo como que um reconhecimento facial, parando num em específico: o Dias. Era um dos maiores accionistas da empresa, que me antecedeu no cargo da Administração. A nossa relação não era a melhor. Ele tinha sido destituído do cargo na Assembleia de Accionistas por suspeitas de desvios de fundos, e tinha um ódio de estimação por mim, apesar de eu não saber porquê, sentimento que ele nunca teve qualquer problema em demonstrar.
- Ora muito boa tarde caros amigos! - saudei eu toda a sala.
Todos me cumprimentaram de volta, quase que em coro, enquanto dava os apertos de mão de praxe. Demos então início à reunião. A Maria estava a um canto, redigindo a acta, enquanto eu mostrava alguns gráficos e tabelas, percentagens e valores devidamente explicados e esmiuçados. O Dias tentou o quanto pôde fazer-me perguntas difíceis para ver se me atrapalhava, mas eu já estava preparado, tinha estado duas semanas a ver e rever aquela apresentação, não deixando nenhum número ou simples vírgula por acaso, porque já sabia que essa seria a postura dele. Mais uma vez tinha aquela sensação de piloto automático. As palavras saíam-me da boca sem que eu desse por isso, os gestos e a postura eram involuntariamente correctos. Tudo corria às mil maravilhas. Lá fora a chuva caía intensamente, empurrada violentamente contra os vidros pela força do vento, não parecendo querer parar. Passaram duas horas desde que tinha entrado na sala, e o ar começava a tornar-se pesado, muito por conta do calor causado por um aquecimento talvez ligado com potência a mais. Eu já tinha tirado o casaco e alargado um bocado o nó da gravata, assim como todos os presentes. Apesar de terem apreciado a minha apresentação, sentiram que haviam algumas arestas a limar, o que arrastou mais ainda a reunião. Enquanto dava mais um gole na garrafa de água, que já era a quarta, o Teixeira pigarreou, dizendo:
- Bem, parece-me que há aqui alguns valores que têm que ser revistos, nomeadamente algumas taxas e projecções. Amanhã voltaremos a reunir-nos, para verificar se esses valores estão mais adequados. Dr. Filipe, quero isso pronto amanhã às 9h no meu e-mail para dar uma vista de olhos, às 10h voltamos aqui para analisar, certo?
- Com certeza Dr. Teixeira, vou começar a tratar disso de seguida. - respondi-lhe, acenando com a cabeça.
- Bem, posto isto, até amanhã às 10h.
O Teixeira acabou de falar e toda a gente se levantou, dirigindo-se para a saída após assinar a acta. Eu e a Maria ficámos para trás, sabíamos o que nos esperava: uma longa noite de trabalho. Recolhi os meus papéis com algumas anotações e fui em passo apressado, quando sinto o telemóvel vibrar, dando conta de uma nova mensagem do meu amor, dizendo: "Como correu a reunião? Espero que bem. Beijo, Amo-te". Suspirei, e comecei a digitar uma nova mensagem de texto. "Correu bem, mas tenho valores a rectificar, não vou jantar a casa e não esperes por mim acordada, a noite hoje vai ser longa. Beijo, Amo-te". Nisto pedi à Maria para não me passar chamadas e não deixar ninguém entrar na minha sala. Lá fora já era noite fechada, apesar de ainda serem apenas 6 e meia da tarde. Comecei a minha odisseia para rectificar o que me tinham solicitado. As horas passavam e eu já ia no terceiro café. Estava a ser mais complicado do que eu julgava, pois pequenas alterações fizeram com que tivesse de reestruturar tudo novamente. Perdi a conta das vezes em que esfreguei os olhos e lutei contra o cansaço, até que por fim acabei.
- Anexar... ficheiro... e pronto, já está.
Senti a sensação de dever cumprido, sorri e encostei-me na cadeira, e fechei os olhos, no que me pareceu uma pequena fracção de segundo, e adormeci. Acordei de repente, e vi que já passavam das 3h. Lá fora continuava o temporal. Fui a correr para o carro, mas isso não impediu que ficasse completamente molhado. Arranquei. Seguia o caminho para casa quando ouço o alerta de e-mail, e verifico a minha caixa de correio, era a minha irmã: "Conta comigo para a ceia e levo o Tom comigo, até segunda". Sorri, finalmente ia conhecer o "bife" que tinha encantado a minha irmã. Subitamente, vejo um clarão à minha frente, uma buzina e dou uma guinada no carro, embatendo contra algo. Sinto um impacto forte. A minha cabeça foi fortemente projectada contra o volante, seguindo-se de uma dor aguda. Senti-me lentamente a perder os sentidos, perdendo a sensibilidade no corpo todo. A visão ficou gradualmente turva, e senti um zumbido nos ouvidos. Comecei a ouvir vozes, que pareciam cada vez mais longínquas. Não consegui perceber o que disseram, até que perdi completamente os sentidos.
Continua(...)
será que te mataram lentamente?
ResponderEliminarp.s: li isto ao som de killing me softly.